sábado, 27 de dezembro de 2008

A primeira lembrança dela

[Foto daqui]

Madrugada na fazenda. Eu, no berço. Tenho um ano, um ano e pouco. Sentada sozinha no lençol branco, perninhas esticadas, camisola branca fina e sem mangas. Ao meu lado estão o travesseiro pequeno e Macaco Simão, bicho quase do meu tamanho, que adoro. De dentro do berço, vejo o mundo segmentado por grades.

Acabo de acordar. Ar quente, abafado. Sinto muito calor. Estou irritada, coço os braços. Sinto fome. Sinto sede. Estou molhada de xixi. Minha perna também coça. Quero minha mãe. Começo a chorar. Choro mais alto. Mais alto.

Ninguém aparece. Sei que a cama dela fica neste quarto. Está escuro, vejo apenas sombras. Medo. Fico de pé no berço, segurando a grade. Choro muito. Engasgo, de tanto chorar. Ninguém vem me ver. Quero minha mãe. Sozinha no escuro. Ninguém vem. Choro tudo o que posso. Ninguém vem. Ninguém está comigo. Cadê minha mãe?

Procuro a direção da cama dela, sob a janela. Então, porque cai a primeira luz da manhã, eu a vejo.

De onde estou, deste canto do meu berço, enxergo a cabeça, os ombros e os braços dela. Está deitada no seu grande travesseiro alto. Seus cabelos pretos, compridos, estão soltos. Ela se mexe sem parar, rola a cabeça no travesseiro pra lá, pra cá. Rola de novo, pra lá, pra cá. Seus braços estão levantados. Ela está abraçando... alguém! Na luz crua do início da manhã, eu enxergo: é o rosto do meu pai. Ela está lá com ele! Os dentes brancos dela estão rindo pra ele. É ele que ela abraça e beija, ela ri pra ele como não ri pra mim, rola com ele no grande travesseiro branco, na sua cama que fica perto da minha mas está tão longe agora.

Choro mais. Sozinha no berço, eu morro de chorar. E ela ri! Ri a mais não poder, a boca aberta, ela ri alto!
Eu escuto sua risada, mas ela não escuta meu choro. Eu vejo seus cabelos pretos voarem, mas ela não vê meus cabelinhos suados. Eu sinto o gozo dela, mas ela não ouve o meu choro, ela não escuta o ronco da minha barriguinha, ela não sente o cheiro do meu xixi. Ela não quer saber de mim.

Por que a minha mãe não vem?

7 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Janaína, amei o texto. BJ

aeronauta disse...

Puxa, Janaína, entrei no seu texto como se eu fosse o bebê que chorava e... eu e o texto fomos nos desvelando, nos desvelando... Meu Deus, como é forte! Ma-ra-vi-lho-so!!!

Cosmunicando disse...

muito bom!

Anônimo disse...

Dolorido crescente. Essa lembrança que precisa ser trocada por outra, talvez a segunda, talvez a última.

Nilson disse...

Belo texto. Quase dá pra sentir o xixi escorrendo pelas pernas e os olhos ardendo de tanto chorar!

Anônimo disse...

Nossa, que texto forte, belo, dilacerante!!! Bjs. M.

Ana Peluso disse...

Jana! Finalmente "de blog"! Felicidade!
Estou te linkando para ficar por dentro do que vai pela sua alma!
Um beijo querida! Saudade. Muita!