quinta-feira, 30 de julho de 2009

Tarô pessoal, carta 5


Heranças

Não só os ricos: todo mundo recebe herança. O ser mais miserável da Terra recebe herança. Vem dos antepassados para nós.

Quais são as suas heranças? Patos, porcos e cabras, este cheiro louco de terra? O alcoolismo da mãe? Tantos abraços, beijos, canções, tanto carinho... Arranha-céus? Ou será este medo que você herdou dos olhos dele? O cabelo em permanente revolta? Este desejo que não vai embora? Sorriso aberto? Um cantinho de jardim, pra só você cuidar? A fé inabalável? A rica, pesada tradição familiar? Quem sabe sua herança é esse devanear, essa dificuldade para aterrissar? Ou a necessidade de cuidar dos outros? A casa de adobe, o chão batido, barriga vazia? Orgulho? Honestidade? Esperteza? Aquela bola esquecida no canto do quarto? Essa sua incansável capacidade de lutar? O estalar de gravetos no fogo? A leitura e a escrita, a doença? O vício? As fotos de família? Nunca conseguir parar? Fortunas em ações, o gosto musical, a preguiça, o trabalho, o corpo atlético, a rotina? Ou nada disso, porém outras coisas mais?

Todo mundo recebe heranças. Reconhecê-las é o primeiro passo. Para então aceitá-las ou recusá-las. Tempo de você pensar no assunto: Quais são as minhas heranças? O que tenho feito delas?
Imagem daqui

segunda-feira, 27 de julho de 2009

A menina e a boneca


Quando o tio lhe estende um embrulho do seu tamanho, arregala os olhos, morta de medo que seja mentira. Aquilo é mesmo pra ela? Mesmo? Sim, vários adultos sorridentes balançam a cabeça ao mesmo tempo. Antes que tudo vire mentira, joga a caixona no chão e começa rápido a rasgar o papel de presente, pedaços coloridos de papel voam pela sala, ela louca pra saber o que tem dentro daquela caixa. Jamais ganhou um presente assim tão grande. Faz tempo que não recebe presente algum.

Quando seus dedinhos grossos conseguem finalmente erguer a tampa da caixa, quase sem respirar grita É uma menina! Ganhei de presente uma menina! E se desconcerta, porque os adultos em volta riem, e detesta que riam dela. Como assim boneca, se as suas bonecas são pequenas e moles, de pano, só a cara têm de louça, seus grandes olhos pintados não se mexem, mas esta... Ah, esta dorme e acorda, acorda e dorme, esta tem cabelos cacheados de fada — a menina sente incontrolável arrepio de satisfação, ao tocar os cabelos da boneca —, esta mexe os braços pra cima e pra baixo, veja! O tio lhe mostra que a boneca... anda como eu! Usa batom e rouge e veste um vestido cor de rosa de festa e um chapéu de festa e sapatos e meias rendadas de festa tão lindos como eu nunca tive nem nunca vou ter na vida.

A menina abraça a boneca-menina, as duas do mesmo tamanho. Abraça mais forte, abraça muito forte, olhos fechados. Sente tanto medo da boneca desaparecer pra sempre, ficarem sozinhos de novo ela e os avós, como antes dos tios surgirem na sua vida. Ainda de olhos fechados, numa espécie de teste dá um beijo tímido na bochecha da boneca, sente sua textura um pouco dura: Ela não foi embora! Desta vez, de tanta felicidade nem escuta a risada dos adultos.

Abraçada à boneca, pela primeira vez na vida a menina sente-se grave. Esta é a sua boneca. Dali em diante caberá a ela, só a ela, cuidar da boneca-menina. Dar-lhe comida, levá-la pra passear, brincar todos os dias com ela na praça, nunca deixar que se quebre, pentear seus cabelos, ajeitando os fios todos na mesma direção, ser sua professora, arrumar seu vestido e chapéu tão elegantes, enchê-la de beijinhos e carinhos, segurar sua mão para que não caia, guiá-la, colocá-la para fazer xixi, protegê-la dos primos assassinos...

A menina percebe a solenidade do momento. Sabe que a partir de agora um outro ser depende dela. Nunca mais será a mesma. Seus olhos ganham pausa, seu peito estreito, que carrega o coração ainda leve, torna-se de repente atento, a boca pensativa, neste instante agarra-se a seus ombros aquela responsabilidade orgulhosa de ter de proteger os outros que carregará vida afora, até a morte.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Para os meus amigos


Pra mim, amigos são as pessoas mais importantes do mundo. Eu não sobreviveria sem eles. Pelos meus amigos, faço qualquer coisa. Amizade, para mim, é o mais precioso dos sentimentos.

Nós, brasileiros, somos amigueiros. Temos lindas músicas sobre amizade. "Amigo é coisa pra se guardar / do lado esquerdo do peito", canta inesquecivelmente Milton Nascimento. E vejam a beleza desta canção de Capiba e Hermínio Bello de Carvalho, Amigo é Casa, na interpretação de Zélia Duncan e Simone — dedico-a a vocês:

http://www.youtube.com/watch?v=3v73ecjopiQ


quarta-feira, 22 de julho de 2009

Cabeça-pipa





















Desde que cheguei de viagem tenho a cabeça solta no ar, flutuante, cabeça voadora, itinerante, andarilha, intermitente, cabeça que se recusa a fixar-se no que quer que seja, blog incluído, cabeça-pluma, imagética, cabeça-menina navegante entre cores, fluidos, soçobros, liberdades, espaçonaves, panelas, segredos, cabeça-pipa.
Escolhi estas imagens do artista australiano Shaun Tan para tentar expressar como anda a minha cabeça hoje. Alguém aí já se sentiu assim?

*Para conhecer o maravilhoso espaço de Shaun Tan, clique aqui.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Viajar é dar um tempo no blog

Amigos, escrevi tanto sobre viagem nos últimos tempos, viajei tanto em sonhos, imaginação, desejos, que cá estou eu no interior de São Paulo, em visita à família do marido, que se tornou minha também. Esse cantinho do Estado de São Paulo (área próxima a Ribeirão Preto, conhecida como "oeste paulista", mas que na verdade fica no leste - era oeste em relação ao Estado do Rio de Janeiro, onde as plantações de café começaram, para alastrar-se depois pelas terras férteis do interior paulista, trazendo consigo as estradas- de-ferro), este cantinho paulista, tão diverso do meu Nordeste natal e do Rio de Janeiro da minha infância e juventude, incorporou-se à minha vida desde que, há anos, fui aqui trazida pelo Luiz, paulista de Araraquara, com muito orgulho, sim senhor.

O interior paulista é um país à parte, costumo dizer, como outros países também temos no Brasil. Terra de gente muito hospitaleira, com aquele ar gostoso de abraço, mesa farta, bolos, doces, quitandas, sua gente calma e de gostos rurais, mesmo quando na cidade. Mas também terra de progresso, dinheiro, intensa circulação de mercadorias, terra de transformações econômicas rápidas - hoje vejo aqui um mar de cana, estimulado principalmente pelo programa do etanol, e criado em apenas poucos anos -, uma gente com um pé bem fincado aqui e um olho na capital, no estudo, na mudança. Terra de índios (as Piracicaba, Ipuã, Nuporanga, Ituverava, Guará estão aí para lembrar o massacre dos primeiros habitantes do lugar, que no entanto revivem no cabelo corredio, nos olhos puxados e na pele maravilhosamente lisa de alguns), terra de negros, terra de imigrantes, de italianos a japoneses, a coreanos, a portugueses, a espanhóis, a árabes...

Existem muitos velhos, principalmente velhas, na nossa família. Nesses dias tenho ouvido delas histórias emocionantes, um pedacinho aqui - a gente adivinhando o resto, entre pães de queijo e bolinhos de fubá -, um olhar furtivo ali, um meio sorriso mais adiante, uma gargalhada que escapuliu...

Na falta de tempo - cadê possibilidade de correr até a lan house, com tanta atividade que esse povo arruma pra gente? - registro agora apenas a história da tia cansada de, todos os dias, durante décadas, ficar à disposição do marido às cinco horas da tarde, para servir-lhe a janta, que ele, homem metódico, exige às seis, porém exige fresca, recém preparada por ela (a comida do almoço não lhe serve), mas, muitas vezes, contrafeito, ou desinteressado, não come. Pois essa tia, cansada da doméstica obrigação, anteontem deu seu grito de independência, viajando conosco para a cidade vizinha, onde nasceu e passou a infância, sem horário - sem horário, vejam bem - para retornar ao marido e à sua janta das seis. Desejava realizar um sonho, pasmem, de anos - perambular um pouco pelas ruas da cidadezinha natal, reconhecer nos velhos prédios, na estação, na praça principal partes do próprio passado, decerto para tentar conferir algum sentido, alguma forma à existência ali vivida: quem sabe a de uma colcha colorida de retalhos, tão bem feita pelas velhas do lugar? Assim a tia fez, andando sozinha o quanto quis. Depois reuniu-se a nós na casa de uma sobrinha, para boas gargalhadas, que a família é palhaça, até as oito, as nove, as dez, sei lá até a que horas da noite, daquela noite que escolheu para ser unicamente dela.

Tive a maior admiração pela tia. Para mim, seu tímido, pessoal, rouco e abafado grito de independência foi tão importante quanto os feitos das outras mulheres nossas mais famosas. As vidas de muitas mulheres ainda se passam exclusivamente entre os estreitos corredores familiares, e toda conquista ali, na obscuridade e submissão da cozinha e da alcova, é tão impressionante quanto as mais retumbantes vitórias coletivas femininas.

Volto a contatar de Maceió. Se dispuser de algum tempo antes disso, retorno daqui para contar-lhes a história da tia que foi a primeira da região a se casar com um japonês e a ter de adaptar-se àquela distante (hoje muito mais próxima) cultura.

sábado, 11 de julho de 2009

Tarô pessoal, carta 4


Voo de pássaro


Quando ele enche o peito e abre as asas com a envergadura da águia, o planeta inteiro se estende à sua frente. Pescoço rugoso esticado para o norte, um olho de cada lado, ele enxerga picos nevados onde águas azuis tremulam por causa do vento capaz de arrepiar o pelo dos mamutes, enxerga manadas de seres humanos correndo livremente rumo ao oceano verde-amarelo, enxerga lagoas prenhes de caranguejos e homens salobros que catam os caranguejos, enxerga marulho, horizonte, escarpas tão íngremes que alpinistas não as conseguem escalar, enxerga o barulho do cabelo molhado das mulheres, o sal, as andorinhas, enxerga o sol que cega e a lua que segreda, em seu papo azul-alaranjado ele enxerga liberdade.

Se você tirou esta carta, é porque hoje, agora, neste momento tem direito a um voo de pássaro. Desfrute-o.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Viajar é imaginar

[Continuando a série sobre viagem]

"O pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar."
(Guimarães Rosa, Cartas)

"Não está em nenhum mapa. As terras de verdade nunca estão."
(Herman Melville, Moby Dick)

"Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei"
(Manuel Bandeira, Vou-me embora pra Pasárgada)

Não me desenhe mapas, senhor.
Minha cabeça já é um mapa do mundo inteiro."
(Henry Fielding, História de Tom Jones)

[Imagem daqui]

domingo, 5 de julho de 2009

Imóvel bem salgado


Acompanhando as dificuldades do meu e-amigo Chorik para encontrar sua nova casa, lembrei-me da história da compra do apartamento onde moro, acontecida há alguns anos. Meu marido e eu havíamos nos mudado recentemente de Brasília para Maceió, em busca de ...
[Continua aqui]

sábado, 4 de julho de 2009

Viajar é confundir-se
















[Continuando a série sobre viagens]


Sempre li que o mundo, formado por terra e água, era esférico, e as autoridades e experiências de Ptolomeu e tantos outros ... comprovaram isso. Agora vi tanta desconformidade, como já disse, que passei a considerar o mundo de maneira diversa, achando que não é redondo do jeito que dizem, mas do feitio de uma pêra que fosse toda redonda, menos na parte do pedículo, que ali é mais alto, e que esta parte do pedículo seja mais elevada e mais próxima do céu, e se localizar abaixo da linha equinocial, neste mar Oceano, nos confins do Oriente.”

[Trecho de uma carta de Cristóvão Colombo aos reis de Espanha, após a sua terceira viagem à América, ocorrida em 1498-1500.
Viajar também é confundir-se, perder as referências, principalmente quando se depara com o inesperado, como aconteceu com Colombo, e pode acontecer com a gente.]

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Viagem — passagem


esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem

Paulo Leminski
* Imagem daqui