domingo, 28 de dezembro de 2008

Ainda o Natal: uma sugestão de Saramago


"Nestes dias em que se celebra o nascimento do Cristo, outra ideia me acudiu, talvez mais provocadora ainda, direi mesmo que revolucionária, e que em pouquíssimas palavras se enuncia. Ei-la. Se é verdade que Jesus, na última ceia, disse aos discípulos, referindo-se ao pão e ao vinho que estavam sobre a mesa: “Este é o meu corpo, este é o meu sangue”, então não será ilegítimo concluir que as inumeráveis ceias, as pantugruélicas comezainas, as empaturradelas homéricas com que milhões e milhões de estômagos têm de haver-se para iludir os perigos de uma congestão fatal, não serão mais que a multitudinária cópia, ao mesmo tempo efectiva e simbólica, da última ceia: os crentes alimentam-se do seu deus, devoram-no, digerem-no, eliminam-no, até ao próximo natal, até à próxima ceia, ao ritual de uma fome material e mística sempre insatisfeita. A ver agora que dizem os teólogos."
[José Saramago, O Caderno de Saramago]
Parece-me ideia muito bem pensada.
Nós, brasileiros, mantemos uma relação muito estreita com a antropofagia. Desde nossas origens mais remotas, fomos estigmatizados, por europeus, como antropófagos. A partir do século XX, desde o modernismo, resolvemos nos assumir como antropófagos, ou seja, nos assumir como aqueles que devoram e digerem dos outros o que desejam.
Por isso, acho que nós, brasileiros — preconceitos religiosos à parte —, poderemos compreender a sugestão de Saramago, e mais: brincar com ela. É a minha sugestão. Fica o convite.

* Foto daqui, da pintura "Santa Ceia", de autoria da artista Bete Brito.

sábado, 27 de dezembro de 2008

A primeira lembrança dela

[Foto daqui]

Madrugada na fazenda. Eu, no berço. Tenho um ano, um ano e pouco. Sentada sozinha no lençol branco, perninhas esticadas, camisola branca fina e sem mangas. Ao meu lado estão o travesseiro pequeno e Macaco Simão, bicho quase do meu tamanho, que adoro. De dentro do berço, vejo o mundo segmentado por grades.

Acabo de acordar. Ar quente, abafado. Sinto muito calor. Estou irritada, coço os braços. Sinto fome. Sinto sede. Estou molhada de xixi. Minha perna também coça. Quero minha mãe. Começo a chorar. Choro mais alto. Mais alto.

Ninguém aparece. Sei que a cama dela fica neste quarto. Está escuro, vejo apenas sombras. Medo. Fico de pé no berço, segurando a grade. Choro muito. Engasgo, de tanto chorar. Ninguém vem me ver. Quero minha mãe. Sozinha no escuro. Ninguém vem. Choro tudo o que posso. Ninguém vem. Ninguém está comigo. Cadê minha mãe?

Procuro a direção da cama dela, sob a janela. Então, porque cai a primeira luz da manhã, eu a vejo.

De onde estou, deste canto do meu berço, enxergo a cabeça, os ombros e os braços dela. Está deitada no seu grande travesseiro alto. Seus cabelos pretos, compridos, estão soltos. Ela se mexe sem parar, rola a cabeça no travesseiro pra lá, pra cá. Rola de novo, pra lá, pra cá. Seus braços estão levantados. Ela está abraçando... alguém! Na luz crua do início da manhã, eu enxergo: é o rosto do meu pai. Ela está lá com ele! Os dentes brancos dela estão rindo pra ele. É ele que ela abraça e beija, ela ri pra ele como não ri pra mim, rola com ele no grande travesseiro branco, na sua cama que fica perto da minha mas está tão longe agora.

Choro mais. Sozinha no berço, eu morro de chorar. E ela ri! Ri a mais não poder, a boca aberta, ela ri alto!
Eu escuto sua risada, mas ela não escuta meu choro. Eu vejo seus cabelos pretos voarem, mas ela não vê meus cabelinhos suados. Eu sinto o gozo dela, mas ela não ouve o meu choro, ela não escuta o ronco da minha barriguinha, ela não sente o cheiro do meu xixi. Ela não quer saber de mim.

Por que a minha mãe não vem?

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O truque do gênio


Hoje, Natal, é dia de festa e brincadeiras em família.

Nesse espírito, repasso a vocês este joguinho que encontrei no Idelber e achei sensacional.

Um gênio tenta acertar — e, em geral, consegue! — o personagem em que você pensou. Vale tudo: personagem vivo, morto, real, ficcional, em qualquer área.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Natal na ilha do Nanja















Na Ilha do Nanja, o Natal continua a ser maravilhoso. Lá ninguém celebra o Natal como o aniversário do Menino Jesus, mas sim como o verdadeiro dia do seu
[O texto de Cecília Meireles continua aqui]

domingo, 21 de dezembro de 2008

O poeta mais importante


Celebridade
Eu sou o poeta mais importante
da minha rua.
(Mesmo porque a minha rua
é curta.)
Quer saber, quer reler quem escreveu este poema? Clicaqui!!!

sábado, 20 de dezembro de 2008

Sabedoria


Dorival Caymmi, ontem, no programa da Globo em sua homenagem:

"Nunca gostei de trabalhos pesados e estafantes.
Sempre preferi os leves e não constantes."

Em sessenta anos de carreira, compôs cem músicas (menos de duas, em média, por ano).
Mudou a cultura brasileira.

[O enredosetramas tá de visual novo. Vai lá conhecer!]

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Pedra, pedreira, natureza







Amélia Toledo é artista inquieta, múltipla: ao longo da vida, trabalhou em quase todas as áreas das artes plásticas —pintura a óleo, joalheria, aquarela, escultura, instalação, off-set, móbiles, serigrafia, construção de brinquedos etc. (muitos outros etc. fazem parte desta lista) — e com quase todos os materiais, como pedra, ar, papel, vidro, areia, aço, fogo, madeira, plástico, conchas, água etc. (também muitos outros etc. fazem parte desta lista!). E com pedras. Sempre gostou de pedras, por isso escreveu um lindo texto sobre elas, que acaba de virar livro. Diz a artista: “Este livro é o resultado de uma convivência íntima com o reino mineral desde quando, aos quatro anos de idade, ganhei de minha mãe uma coleção de rochas que hoje, aos oitenta e um anos, ofereço como tributo aos ensinamentos que a natureza me oferece.”

Escrito em linguagem coloquial, poética, envolvente, Das viagens do Juca pela natureza (S.Paulo: Iluminuras, 2008) conta a história de um seixo rolante, Juca, trazido da Suécia para o Brasil na bolsa de uma amiga da autora, e de suas descobertas e aventuras pelo reino mineral brasileiro. É um livro lindíssimo, de ótimo papel, todo ilustrado com fotos e invenções visuais (capa e projeto gráfico de Maína Junqueira, à altura da autora). Um livro que me levou a viajar por terras nunca dantes visitadas, descobrindo imagens e idéias e sensações e poesias insuspeitas do reino mineral, através da sensibilidade da artista. Ganhei o livro, pasmem! num sorteio, lá do Verso & Prosa, comunidade literária a que pertenço e recomendo. Das viagens do Juca pela natureza chegou ontem, gentilmente enviado pela Renata Nassif, eu já o li inteiro de um fôlego (quase sem fôlego), encantada, e hoje corri aqui para compartilhar a novidade com vocês. Um pequenino trecho dele:

“Será que as pedras, tidas como mudas, teriam também capacidades musicais? Por que se fala tanto em sons cristalinos? Teriam então, as pedras, formas de se comunicar como resto do mundo, além daquele prazer maravilhoso proporcionado a todos que têm olhos para ver, por suas cores, desenhos ou feitios, para não falar também de suas propriedades curativas, o que afinal se passa com as energias, conforme dizem os físicos?Tudo isso levou Juca a imaginar o mundo como um todo composto de inúmeras variedades numa constante e amorosa procura de comunicação.”
[*Fotos daqui e daqui]

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Meu gato

[Para crianças pequenas]

Gato gargalhada

Vocês podem não acreditar,
mas eu juro —
meu gato ri

Dá cada gargalhada!

Ri à noite, só pra mim
Rola no chão
embola o rabo
balança a pança
lambe o bigode
me pisca o olho
e

miá á á á á á á á á á
miá á á á á á á á á á
miá á á á á á á á á á

Meu gato ri!

sábado, 13 de dezembro de 2008

Diálogos (im)possíveis 10


[Este diálogo foi encontrado não por mim, mas pelo Mariano, do ótimo blog A Peneira do Rato. Foi escrito por Dostoievski. Refere-se a um de meus assuntos prediletos:]

Stavrogin:
— ...no Apocalipse, os anjos juram que o tempo não mais existirá.
Kirillov:
— Sei disso.É uma verdade indiscutível, afirmada com toda clareza e exatidão. Quando a humanidade alcançar a felicidade, não existirá mais o tempo, pois dele não mais se terá necessidade. Perfeitamente verdadeiro.
Stavrogin:
— Onde vão colocá-lo, então?
Kirillov:
— Não vão colocá-lo em lugar nenhum. O tempo não é uma coisa, é uma idéia. Ele morrerá na mente.

(Dostoievski, Fiodor. Os Demônios. São Paulo: Editora 34, 2004. Em edição e tradução anterior brasileira, este mesmo livro havia sido intitulado Os Possessos]

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Hi hi hi


Meu post de ontem, expondo preguiça e rede, provocou adesões entusiasmadas e protestos francamente invejosos. Para continuar brincando, hoje envio a vista da minha varanda. Esta é a horrível paisagem que sou obrigada a enxergar todos os dias...

Quer dizer, todos os dias, não, apenas algumas horas por dia, pois, devido ao colar de arrecifes em frente à praia, as marés aqui são pronunciadas, provocando súbitas mudanças na aparência do mar. Camaleônico, num mesmo dia ele se oferece inteiramente verde, listrado de verde-claro e verde- escuro, rendado de espumas, salpicado de azul mediterrâneo, enfeitado com as jangadas dos turistas, que navegam na cheia, e com as finas canoas dos pescadores, que aproveitam a vazante, com arco-íris, sem arco-íris... De permanente mesmo só a temperatura, invariavelmente morna. Somem a tudo isso as variações da luz sobre o mar, e vocês terão uma (pálida) idéia deste meu cantinho especial na praia de Pajuçara, Maceió, Alagoas, onde em boa hora me refugiei com Luiz, após muitos anos de trabalho duro dos dois. Nossa Maceiócio.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Vida marvada











Hoje, estou sentindo uma preguiça!
Milhares de coisas pra fazer, e essa vontade de só ficar no ócio, deitada na rede,
me balançando...

Vida marvada

Você não sabe como é bom viver
Numa casinha branca de sapé
Com uma mulher a nos fazer carinho
Uma galinha, dois ou três pintinho

Se o sol tá quente a gente arranja rede
Garra a viola presa na parede
Acende o pito cospe e passa o pé
E deixa a vida como Deus quiser

Eh! vida marvada
Não adianta fazer nada
Pra que se esforçar
Se não paga a pena trabalhar!

Não sei por que aqui não nasce nada
É só capim, só mato, espinharada
Não nasce arroz nem milho nem feijão
Não sei o que existe neste chão
De manhã cedo eu olho pra rocinha
Pra ver se às vez nasceu qualquer coisinha
Mas qual o quê, não nasceu nada, não
Plantando nasce, mas não planto, não!

Eh! vida malvada... [bis]
[Deliciosa toada mineira, que expressa tudo o que sinto hoje. Letra — uma das versões — de Lúcio Mendonça de Azevedo, música do grande Almirante]

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Florbela Espanca:os sentimentos expostos


Quer conhecer ou reler Florbela Espanca, uma das mais intensas poetas portuguesas? Clicaqui!

sábado, 6 de dezembro de 2008

Intimidade


(Foto daqui)

[Encontrei este post de João Grando, do ótimo João´s Opiniões, e o comentei assim:]

João, tem dias — horas, segundos — em que também me sinto assim. Água, brisa, leve e forte ao mesmo tempo, no peito janela escancarada para o horizonte, cabelos soltos ao vento, completamente pacificada por dentro, por fora. Poderosa como deusa, etérea, atada a cada migalha, inhame, rato, carambola, mandacaru, astro e ser humano do universo. Sinto as infinitas dimensões e passeio por todas elas, vôo, mergulho, dou cambalhota completamente livre, eu transcendência, aerágua em terra. Fecho os olhos devagarinho, e agradeço (minha forma de rezar) pela intimidade.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Escrever por prazer

Caricatura daqui


Uns escrevem para se expressar, outros para se suportar, outros para ensinar... Mil são as motivações para escrever. Alguns escrevem para divertir, a si mesmo e aos outros: escrevem por prazer. É o caso de Bernardo Guimarães e Maria Judith Ribeiro, no livro "Morte Abjeta" ...

(Continua aqui)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Uma casa é uma coisa que se encontra


Terminei de ler há dias o livro Os da minha rua, do angolano Ondjaki, que, ainda jovem (31 anos), é poeta, romancista e contista, e já publicou 7 livros, alguns detentores de prêmios e traduzidos em outras línguas. Comprei o livro na Fliporto e ganhei autógrafo do autor, com direito a desenho e tudo.
Este é o primeiro livro de Ondjaki que leio. Composto de capítulos curtos (que podem ser apreciados independentes uns dos outros ), o livro recria a infância do autor, de seus parentes mais chegados e de seu grupo inseparável de amigos — os da sua rua — na cidade de Luanda, década de 80.
É um livro mágico sobre infância e memória da infância, comovente sem jamais ser piegas, com cheiro de fruta, calor de abraços e deslumbramento de descobertas. Revisita a infância, esse tempo fundante do autor e de todos nós, com afeição, encantamento, humor, simplicidade, imaginação. Adorei.
Pra vocês, o trecho final do capítulo "palavras para o velho abacateiro":
“Não gosto de despedidas porque elas chegam dentro de mim como se fossem fantasmas majumbeiros [=fofoqueiros] que dizem segredos do futuro que eu nunca pedi a ninguém para vir soprar no meu ouvido de criança.
Desci. Sentei-me perto, muito perto da avó Agnette.
Ficamos a olhar o verde do jardim, as gotas a evaporarem, as lesmas a prepararem os corpos para novas caminhadas. O recomeçar das coisas.
— Não sei onde é que as lesmas sempre vão, avó.
— Vão para casa, filho.
— Tantas vezes de um lado para outro?
— Uma casa está em muitos lugares – ela respirou devagar, me abraçou. — É uma coisa que se encontra.”
(Ondjaki, Os da minha rua. Rio de Janeiro: Língua Geral, Coleção ponta-de-lança, 2007)