quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Diálogos (im)possíveis 7

[Minha mãe era comunista, defensora ardorosa das idéias do PCB. Meu pai também, embora tenha se desligado do Partidão em 1957. Informações sobre as maravilhas do mundo comunista eram comuns na minha família desde que eu me entendi por gente. As bonecas russas de madeira que saíam uma de dentro da outra, ao lado de fotos e distintivos da Cortina de Ferro, misturavam-se às minhas bonecas brasileiras de pano.
Minha mãe tratou logo de reforçar esses ensinamentos, durante as aulas que me deu para o exame de admissão ao ginásio (relatadas no último post). Ela aproveitou bem o tempo para concluir a doutrinação da filha.
Na prova oral de geografia, aconteceu o seguinte diálogo:]



— Diga o nome de três países europeus com suas capitais, ordenou o professor.
— União Soviética/ Moscou, Tchecoslováquia/Praga, Polônia/Varsóvia, respondi na bucha, sem pestanejar.

Ainda hoje me lembro da expressão surpresa do professor Almir, seguida de um sorrisinho, cabeça baixa. Acho que ele era simpatizante...

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Como eu soube que ela me amava


Eu só senti que ela me amava aos dez anos de idade. Minha mãe chegou ao Rio de supetão, sem avisar ninguém. Ao saber que eu decidira pular a quinta série, e em breve prestaria exame de admissão ao ginásio, arregaçou as mangas, colocando seu lado professora em ação. Passou a me dar aulas todas as tardes, na sala do apartamento onde eu morava com papai. Foi excelente professora: metódica, paciente, clara, exigente. Ensinava principalmente matemática, sua especialidade, justo a matéria em que eu era mais fraca. Lembro-me com muito prazer dessas nossas aulas. Eu gostava de estudar, e ela, de ensinar. Em volta da grande mesa preta, junto à janela da sala, nós duas fomos nos conhecendo melhor, começando a nos admirar, nos reencontrando.

Fiz os exames escritos. Junto com os outros candidatos, certo dia compareci ao colégio. Todas as crianças em fila, a diretora começou a ler os nomes dos aprovados, que deveriam passar ao segundo andar, para os exames orais. De jeito nenhum eu queria ficar ali, no meio dos reprovados, cidadã de segunda classe, escória do mundo! Demorou uma vida pra diretora chegar ao “J” e chamar meu nome.

Deixei a fila toda orgulhosa, os pesados sapatos pretos batendo no cimento do chão, plaft, plaft. Ali, no primeiro degrau da escada, encostada na parede, de repente eu a vi. Até perdi a respiração, de tanta surpresa, confusão, descoberta.
Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Foi a única vez em que vi minha mãe chorar.

domingo, 26 de outubro de 2008

Minúsculos assassinatos

(Foto de Alex de Jesus, neste site)

Blogueira recente, eu não conhecia o famoso drops da Fal (http://dropsdafal.blogbrasil.com/ ). Li há poucos dias uma entrevista da autora no Amálgama, visitei seu blog, comprei pela internet seu último livro (Fal Azevedo. Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite. Editora Rocco, 2008), acabei de lê-lo ...

(O texto continua aqui)

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Sosígenes Costa

(Foto daqui)

Sosígenes Costa lhe parece nome de remédio?
Está com saudade do grande poeta?
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quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Graciliano


Fico contente quando vejo iniciativas culturais importantes. Ontem, fiquei. Na terra de Graciliano Ramos, Alagoas, foi lançada Graciliano, revista de cultura e ciência destinada ao público universitário e àqueles que desejam mais informações e pontos de vista sobre os assuntos tratados. Dirigida pelo historiador e sociólogo Luiz Sávio de Almeida, com visual moderno e atrativo criado por Fernando Rizzotto, com artigos assinados por especialistas, porém escritos em linguagem clara, atraente, a revista é uma publicação da Imprensa Oficial, presidida por Marcos Kümmer e atualmente subordinada à Secretaria de Planejamento e Orçamento, sob a batuta do secretário Sérgio Moreira. Bom ver o dinheiro retornar à sociedade em forma de cultura, multiplicador de conhecimentos.
O primeiro número é inteiramente dedicado a Graciliano Ramos. O segundo será sobre teatro. Vida longa à revista, muitos e muitos gracilianos!

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Pra começar bem o dia

João, João
você filosofa, filosofa,
mas não tem essência.
Você é purinho
plano de imanência.

(Noemi Jaffe, Todas as coisas pequenas. S.Paulo, Hedra, 2005)

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Convite para viagem


Você está convidado, você está convidada a embarcar numa viagem que começa hoje, aqui. Como toda viagem, esta a gente só sabe quando começa, mas não tem a menor idéia de onde, quando, muito menos de como acaba. Viagem é descoberta, aventura, estranhamento, transformação —travessia. Vem, que o vapor já tá saindo e a companhia é boa.

Em tempo:

Eu já estou pronto para a viagem, aguardando o vapor aqui no cais de atracação do rio Paraguaçu. Sinto-me um pouco ansioso, nervoso, mãos suando, neste 5 de abril de 1933. Sou jovem, só tenho quatro meses de jornal. Fui destacado para cobrir a viagem do dr. Otto Billian, cientista e industrial alemão, pelo interior do Estado. Desconfio que me escolheram porque ninguém mais no jornal aceitaria missão tão espinhosa. Não importa: esta é minha primeira oportunidade de me distinguir na profissão. Estou decidido a fazer da cobertura desta viagem meu passaporte definitivo para o mundo do jornalismo. Na foto, sou o rapaz alto, o do centro, de terno e chapéu, voltado para a câmera. Ao meu lado, de terno branco, está o dr. Otto Billian, personagem principal desta expedição. Não perdi tempo, já o estou entrevistando!
(A foto é do Valter Ribeiro, conhecido como Valter Cachaça, nosso fotógrafo, que embarca também.)

sábado, 18 de outubro de 2008

Mais tempo do que eu poderia suportar


Quer saber por que voltei à literatura? Clicaqui!
Não quer saber? Então não clicaqui, ora!

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Diálogos (im)possíveis 6



[Ainda sobre lobisomens. Num livro on line que escrevi para crianças, intitulado Lobisominho, a cada quinze dias um capítulo ia ao ar. Ao final de cada capítulo, eram feitas perguntas às crianças, para conhecer suas impressões e estimular sugestões sobre o desenrolar da história. Essa experiência de contato direto com os leitores, aliás, foi sensacional. Aprendi muito com as crianças sobre construção de personagens, desenvolvimento de enredos, sobre o que gostam ou não de ler, etc. Aproveitei muitas das suas sugestões, oferecidas sempre com generosidade, entusiasmo e enorme imaginação, livre das limitações adultas.]

No final do primeiro capítulo, perguntei às crianças:
— Você acredita em lobisomem?
Resposta enviada por uma menina de oito anos:
— Eu acredito. Mas eles não existem.
(Ilustração de Fábio Moino para Lobisominho)

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O lobisomem de Viçosa






















(Fotos: Luiz Carlos Figueiredo)

Adoro lobisomens. O principal personagem masculino de meu romance Dandara é um faiscador que, nas noites de lua cheia dos meses de trinta dias, se transforma em lobisomem. Escrevi um livro para crianças, intitulado... Lobisominho. Jamais duvidei da existência desses seres enigmáticos que incendeiam nossas imaginações, confrontando-nos com nossos medos e instintos básicos. Lobisomens estão por aí há séculos, já foram vistos por milhares — bem, talvez centenas — de pessoas. Entre elas, meu filho Bernardo, aos três anos de idade, e meu sogro Deodato, ótimo pescador, que me fizeram relatos detalhados, saborosíssimos, de seus encontros com lobisomens. Há quem desacredite do relato de crianças e pescadores, mas é evidente que esses incréus nada sabem da vida.
Ainda recentemente, conheci um novo lobisomem. Foi na cidade de Viçosa, interior de Alagoas (já notaram que lobisomens não nascem em litorais? Vai ver, têm medo d´ água), quando visitávamos a movimentada feira de sábado, capitaneados pelo poeta Sidney Wanderley, conhecedor de tudo e todos em sua terra natal. Nos deliciávamos com a profusão de cores, odores, sabores, entre queijos, jacas, cocos, melancias, macaxeiras — nada se compara a uma feira de sábado no interior do Nordeste —, quando Sidney cumprimenta vivamente um passante e o faz parar , nos dizendo: “Este é meu amigo José Neto, pintor de profissão. Ele conhece o lobisomem de Viçosa.”
Então acontece bem ali à nossa frente o milagre, epifania. Zé Neto, pacífico avô a fazer compras na feira, de repente se transforma no lobisomem que descreve e conhece tão bem. Não é mais ele quem está ali, em sua camiseta escrita em inglês e enormes óculos escuros, mas um aterrador, enlouquecido lobisomem que em noites de lua cheia sai dos becos para assombrar os moradores da cidade, imenso, peludo, dentes pontiagudos, assim ó, garras à mostra, arfante, dono de um urro ouvido até em Capela, até em Mar Vermelho tem gente que escuta o urro deste lobisomem esfomeado, pelos da cara espetados, focinho tremendo, sempre pronto a atacar as pessoas, a morder, a estraçalhar... Uma noite ele correu atrás da mãe, queria comer a própria mãe! Sim, todos aqui sabem quem é este perigoso lobisomem: umpobre que gosta de ficar vagando sozinho, à noite. Não, ele não concorda que seja o lobisomem, mas ninguém acredita nele, afinal todo mundo aqui já viu...
A platéia cresce, crianças se aproximam para ouvir Zé Neto. O poeta Sidney se empolga, ao recordar o medo que o menino Sidney sentia do monstro. Por um breve tempo, ele também se transmuta em lobisomem.
Desse encontro ancestral saio encantada. Prometo voltar, pois Zé Neto informa que em Viçosa vive também uma lobismulher.
[Pra comprovar a veracidade do relato, aí vão as fotos: Zé Neto/lobisomem mostrando as garras; lobisomem em posição ereta; lobisomem com a pata fechada; a platéia aumenta; o poeta também conta sua história; vista parcial de Viçosa: em qual dessas casas habita o terrível lobisomem?]

domingo, 12 de outubro de 2008

O ovo do mundo

(Foto daqui)

O ovo do mundo

Galinha, pato, passarinho
nascem de ovos
Dinossauros, também!

Será que o mundo
nasceu de um ovo?

Devia ser gigante,
o ovo do mundo!

Dentro dele tinha
gema? Clara? Ou
dentro dele tinha
gente?

Quem será que botou
o ovo do mundo?

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Mário Faustino

Quer rever ou conhecer o poeta Mário Faustino?
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Tristeza


Hoje estou me sentindo muito triste.
Nem consigo escrever sobre essa tristeza.








quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Nunca se casaram


Nunca se casaram. Quando se conheceram, no trabalho, ela era recém separada, se arrepiava só de pensar em casamento. Ele, jovem rebelde com causa, também não fazia questão nenhuma. Gringo recém desembarcado, tonto com os violentos sabores e a bagunça brasileira, apaixonou-se de cara pela morena séria e linda, linda como jamais vira uma, oclinhos de aro fino, bloco na mão a secretariar os diretores da empresa, e uma ginga e um perfume e uma pele completamente lisa que o enlouqueciam.
Deixava-se ficar depois do expediente só pra terem uma chance de conversar, mas ela era difícil, não dava papo. Foi salvo por um comentário distraído, “Tenho de aperfeiçoar meu inglês, a empresa vai entrar agora numa área que não conheço”. Mais que depressa lhe ofereceu a aula de inglês mais barata da cidade, e ainda topou chegar ao trabalho mais cedo, no único horário livre dela.

Aula prá cá, aula prá lá, ela também caiu de amores pelo gringo aventureiro e bem-humorado, dono de um português arrevesado mas carinhoso, o único pra quem sua filha pequena corria rindo, braços abertos antecipando o abraço. Abandonou por uns tempos seriedade, equilíbrio, responsabilidade, pesos que desde pequena carregava nos ombros, como sina. Com ele saltou de pára-quedas, escalou montanhas, matou dia de trabalho, fez trilhas em matas, tomou banho de mar sob a lua, nua. Quando ele recebeu uma proposta de trabalho em outra cidade, foram morar juntos. Mas não se casaram, nem mesmo quando nasceu a filha.

Então ele começou a beber. No início socialmente, um chopp aqui, um whisky ali, depois dois, três copos, cinco, oito, vinte. Apaixonou-se pela cachaça, experimentando todas. A seguir já bebia sozinho noite adentro, em casa primeiro, depois solitário pelas ruas. Voltava de manhã, sujo, rasgado, sem dinheiro e sem estima. Quase morreu, em dois acidentes que provocou. Perdeu tudo: emprego, bens, ela, as filhas, alegria virou vergonha, culpa. Buraco. Um dia, decidiu voltar para seu país. Colocou tudo o que possuía numa mochila e foi ao encontro da mãe, velha e quase cega, que não via há anos.

Sozinha, duas filhas para terminar de criar, ela se valeu da responsabilidade, seriedade, organização, coragem e capacidade de trabalho que nunca a haviam abandonado. Foi em frente. Tocou a vida, pagando as contas, orientando as filhas, um caso amoroso aqui, outro ali – continuava linda –, no coração um vazio danado. Ele ligava com frequência, interessado nela, nas meninas, perguntando dos amigos, contando vagamente de sua vida, estava sendo importante voltar às origens... Ainda não podia ajudá-las financeiramente, ganhava o mínimo. Às vezes, ele falava enrolado – e ela sabia o cheiro do álcool pelo telefone.
Num aniversário da filha, ele apareceu de surpresa. Passou uma semana com elas. A convivência foi muito boa. “Parece até que a alegria voltou aqui pra casa”, ela se pegou devaneando no jardim. Mas se crispou ao ouvir o portão bater duro lá fora: começava mais uma rodada noturna dele. No ano seguinte, ela e as filhas foram visitá-lo, afinal as meninas sentiam muita falta dele. Não bebeu naqueles dias, ao menos que ela visse.
No Natal, recebeu de presente uma passagem, para encontrá-lo na Espanha, lugar especial na história deles. Foi sob os arcos romanos de Segóvia que voltaram a fazer amor, cada um sentindo de novo aquele gosto inconfundível na boca, na alma. A partir daí passaram a viajar juntos uma vez por ano, pelo Brasil e exterior, dependendo das finanças dele, às vezes em companhia das filhas. Ele continuava bebendo, embora menos. Procurava se controlar, mas um belo dia largava tudo e saía sozinho na noite rumo ao seu inferno pessoal. Como se viam só por uma semana, um mês no máximo, e como esses dias eram em geral deliciosos, ela suportava. Só não queria viver junto, muito menos se casar. As amigas invejavam: “Esse é o casamento ideal!”.

Ele esteve presente em todas as datas importantes da família. A cada vez deixava um pouco mais de coisas, pois sabia que voltaria em breve. Quando a filha resolveu se casar, tomou a decisão: retornou de vez ao Brasil, não queria ver o futuro neto crescer longe. Ela concordou com uma permanência curta dele na casa, até que se ajeitasse em algum outro lugar. A permanência foi se estendendo, ficando longa, longa... E ela não podia deixar de sentir como era bom acordar ao lado dele.

A última vez em que bebeu foi num aniversário da filha. Teve ajuda médica para isso, mas antes também tivera, e não adiantara. Não bebe há quase dois anos. A casa deles voltou a ser alegre. Ela se permite de novo ser um pouco irresponsável, mais leve, cabeça de vez em quando nas nuvens, na música... Ele, mais equilibrado, sabendo do que precisa, recuperou trabalho e bom humor.
Eu disse "nunca se casaram"? Pois se casaram há pouco, quando souberam que ganhariam um neto. Acharam que, afinal, não ficava bem se tornarem avós solteiros...

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Diálogos (im)possíveis 5

(Foto publicada originalmente aqui)
Diálogo na sombra

– Que dissestes, meu bem?
– Esse gosto.
Donde será que ele vem?
Corpo mortal.
Águas marinhas.
Virá da morte ou do sal?
Esses dois que moram no fundo e no fim.
— De quem falas amor, do mar ou de mim?

[Jacinta Passos, Canção da Partida. S.Paulo: Edições Gaveta, 1945. Este livro será reeditado em breve]

sábado, 4 de outubro de 2008

O Passado (outraspalavras 1)

[Charmaine Green, Australia. Postagem original aqui]

[Nunca gostei de aforismos, citações, esse tipo de coisa. Implico com eles, achando-os moralistas, chatos, auto-ajuda barata. Pra pagar a língua, começo hoje uma série de pequenos trechos, poemas, frases de que gosto muito. São palavras especiais, cheias de significados para mim, às quais sempre retorno. Começo com estas, sobre passado e memória, temas de minha predileção].
"O passado é o que não passa, o que nunca termina de passar, o que segue passando todo o tempo. Não é algo que fica para trás: é algo que pesa, atua, intervém no presente. Uma espécie de fantasma que volta. Convivemos todo o tempo com o passado, falamos com espectros, coabitamos com mortos, noivas que abandonamos ou que nos abandonaram, histórias que acreditamos acabadas. Não só recordamos o passado: vivemos com ele, dentro dele, contra ele."
[Alan Pauls, excelente escritor argentino contemporâneo, autor dos romances O Passado e História do Pranto. Entrevista ao jornal " O Popular", lido em Cileide Alves Cunha: Aval do Passado, 2008].

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Pescador de nuvens

[Foto originalmente postada aqui]

Ananias apoiou o peso da velha carcaça sobre a bengala e se concentrou na lenta, dolorosa descida até a cadeira de lona. O tremor nas pernas atrapalhou, o maldito tronco pendeu para frente e para trás, faltou fôlego e uma dor fina picou a base da coluna, fazendo-o gritar. Largou o corpo, mas calculou mal a distância. Caiu enviesado, a cabeça contra a borda de madeira, o corpo afundado na ...

[Para continuar a ler o texto, clique aqui]