terça-feira, 30 de setembro de 2008

Viagem ao interior (mar cerrado)

Amigos, viajo, daí o silêncio por aqui. Estou em Goiânia, Planalto Central. Sou do litoral, nasci em Salvador, fui criada no Rio de Janeiro, moro hoje em Maceió, me chamo Janaína, sou de Oxum e adoro o mar. Sou água, sou mar, pro mar quero voltar, litorânea.
Vivi no entanto vários anos neste Planalto Central, em Goiânia e em Brasília. O céu mais lindo do Brasil. E um planalto tão imenso e plano que, quando morava aqui, sentia, meio perdida: no final desta planura tem de ter mar, tem de ter. Andava em direção ao horizonte, andava, andava, corria de carro... Mas mar? Nunca tinha, não sinhô. O mar mais perto está a mil e quinhentos quilômetros daqui.
O que o Planato Central tem é este céu escandalosamente largo, muita terra, este espaço vasto que tonteia a gente. E cerrado. Cerrado tinhoso: árvores retorcidas, baixinhas, que insistem em crescer na terra ácida (hoje corrigida, para o plantio da soja). Cerrado espantosamente pobre, pra quem, como eu, veio do litoral. Cerrado espantosamente rico, descobri com o tempo, que só concorda em revelar aos poucos, e mesmo assim muito devagar, os seus segredos infindos, cerrado de descobertas: bichos, pássaros, estranhíssimos cupins, tons de terracota, de amarelo, laranja, marrom. E estes ipês, amarelos e vermelhos, de repente, desavergonhadamente iluminando o nada, a vida.
O cerrado é meu interior, descobri ontem aqui sob a lua, durante este retorno. Por fora sou mar, por dentro, cerrado. Mar de cerrado.
Até a volta, ainda esta semana.

sábado, 27 de setembro de 2008

Roda de leitura







(Fotos de Luiz Carlos Figueiredo)
Hoje me emocionei, ao visitar um atelier de ceramistas na pequena cidade de Capela, interior de Alagoas. Capitaneado pelo excelente João das Alagoas, que começa a ganhar algum destaque na mídia nacional, o atelier atualmente reúne seis artistas, que trabalham tanto sozinhos quanto em conjunto. Gente do povo, gente talentosa que luta contra dificuldades de toda sorte para exercer sua arte.
Aproximei-me de uma das ceramistas, Maria Luciene da Silva Siqueira, a Sil, muito concentrada no trabalho. Examinando a peça que ela esculpia, percebi tratar-se de uma cena doméstica: uma casa pobre, um grupo de pessoas reunido à frente da casa, dois cachorros deitados no chão, gente na janela... Espere!
"Quem é essa figura central aqui, o que ela tá fazendo?", perguntei à Sil.
"Ah, essa é a contadora de histórias. Isso aqui é uma roda de leitura, ela está lendo pra sua família."
Não é de emocionar? Tanta gente reclamando do declínio de leitores no Brasil, e a Sil esculpindo roda de leitura em Capela.
Vejam como é bonita a obra da Sil. As fotos são: a artista junto à sua peça, ainda inacabada; o conjunto da roda de leitura; e um close, para vocês verem como as pessoas que participam da roda estão adorando ouvir histórias, estão felizes.
Tanta gente reclamando da baixa vendagem de livros, e a Sil esculpindo roda de leitura em Capela.
Quem quiser falar com a Sil, ligue para (82) 9991-5250.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Diálogos (im)possíveis 4

(Foto: Floresta européia onde Pedro Lobisomem nasceu)
O diálogo (im)possível de hoje está aqui.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

As múltiplas possibilidades das coisas

(Foto: "Na pressão", de Luis Augusto Jungmann Andrade)
Juro que aconteceu assim: primeiro escrevi, no enredosetramas, o post sobre a letra do Chico, O que será que será. Depois, procurei uma foto que a ilustrasse. Precisava de uma foto misteriosa, intrigante, que combinasse com a letra e com meu pequeno comentário a ela. Escolhi uma foto (do ótimo site português olharesaeiou) que me pareceu dialogar bem com a letra.
Aqui, na chamada de ontem para o enredosetramas, postei o mesmo título e a mesma foto de lá. Ao escrever, porém, a frase “Quer descobrir? Clique aqui”, eu pensava no título do post, "O que será", e não na foto. Minha idéia era a de que os leitores, remetidos a enredosetramas, palpitassem lá sobre a letra do Chico.
Qual não foi a minha surpresa quando o Adelino e todos os outros comentadores do post de ontem palpitaram, aqui, sobre o que seria não a música, mas... a foto! Adorei isso. Me fez pensar 1) na força da fotografia; 2) em daqui pra frente ser mais clara: não confundir os dois posts, embora mantendo o diálogo entre eles.
Mas, principalmente, o que aconteceu ontem me apontou, mais uma vez, as múltiplas possibilidades das coisas: uma música que todo mundo conhece faz perguntas cujas respostas ninguém ao certo conhece (isso, gente, lá no outro blog, he he); aqui, uma foto posta só para ilustrar se agiganta, despertando diversas interpretações; algo que escrevo aqui com uma intenção repercute em outra direção. Enfim, nada é necessariamente o que parece, ou o que a gente quer que seja. Esses são os truques que realmente me interessam: os das infinitas possibilidades da nossa imaginação e da nossa interação.
Ah, a foto? O que é? A mim, parece metade de um coco, emitindo intensíssima luz (acho que foi essa luz que me atraiu). Mas, se vcs. tivessem clicado no link do fotógrafo, veriam que ele mesmo esclarece o mistério. Sua foto se chama... “A paisagem que escapuliu”.
Hi, hi, hi...

terça-feira, 23 de setembro de 2008

domingo, 21 de setembro de 2008

Diálogos (im)possíveis 3


O Sol pergunta pra Lua:
— Por que foges de mim?
Muito espantada, responde a Lua:
— Fugir? Mas se tudo o que eu quero é alcançar você!

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Vincent


Me apaixonei pela professora.
Desenhei pra ela
gigantescos girassóis azuis.

Ela olhou meus girassóis
Sorriu, passou a mão nos meus cabelos.
Achei que tinha gostado.

Mas o que ela disse,
balançando a cabeça, foi:

— Vincent, não existem girassóis azuis!

Enlouquecido e triste,

larguei a professora de lado.

Hoje desenho
gigantescos girassóis
alaranjados.

Hilda Hilst

Tem Hilda Hilst aqui. Você não conhece ou não gosta da Hilda? Pois não sabe o que está perdendo, vai lá!

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Diálogos (Im)possíveis 2


Numa pequena cidade da costa leste dos Estados Unidos, um americano chega para assistir a uma apresentação da orquestra local. O teatro está vazio. O americano se dá conta de que chegou uma hora antes do espetáculo. Abre a porta do auditório e se acomoda na fila do meio, para esperar o início da apresentação.
Minutos depois, chega um chinês que mora nas redondezas. Constatando que não há ninguém por ali, vê a porta do auditório aberta, vai até lá e enxerga o solitário americano. Silenciosamente, o chinês caminha até o americano e senta ao seu lado.
— Mas que diabos, com tanto lugar vazio, este chinês vem sentar justo ao meu lado! – pensa o americano, profundamente incomodado.
O chinês passeia os olhos pelo auditório, pensando, também profundamente incomodado:
— Como é triste uma sala vazia!

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Intruso

Quando eu me desespero de chorar, ela chega.O meu país do leite nasce no bico do seio dela.

Corredeiras de leite deslizam suavemente, sem parar, e me envolvem, me abraçam, me acalentam, me afagam, me dão as boas vindas ao mundo. Às vezes...
[Para ler o resto do texto, clique aqui]

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Diálogos (Im)possíveis

[Após a história do imigrante japonês aí embaixo, fiquei pensando: muitos diálogos começam impossíveis, mas podem se tornar possíveis. Os imigrantes japoneses não chegaram por baixo e incompreendidos a um mundo que também não compreendiam, e hoje estão aí, brasileiros como todos nós? Outros diálogos até começam bem, porém se tornam impossíveis... Assim, a série iniciada como “Diálogos Impossíveis” passa daqui pra frente a se chamar “Diálogos (Im)possíveis”. Ficará a seu cargo decidir qual dos dois.]

— Você me ama?
— Não.

sábado, 13 de setembro de 2008

Diálogos impossíveis


[Neste ano em que se comemora o centenário da imigração japonesa no Brasil, esta pequena história, verídica, ouvida há poucos dias no interior de São Paulo, é dos primeiros anos dos japoneses aqui. Ela dá uma idéia da distância abissal entre os dois mundos que então começavam a se tocar:]

O japonês desembarcou em Santos. Na alfândega, o fiscal implicou:
— O que é isto que você traz aí? – apontou para um pacote no colo do outro.
O japonês não entendeu a pergunta, mas entendeu o dedo apontado do fiscal. Agarrou seu pacote com força.
— Você não pode entrar sem eu saber o que tem nesse pacote. Anda, abre!
Assustadíssimo, sem emitir um som o japonês agarrou-se ainda mais ao pacote.
O fiscal perdeu a paciência: rasgou o papel, abriu a tampa de uma espécie de vaso, enfiou o dedo lá dentro, colocou o dedo na boca e, não reconhecendo o gosto, decidiu:
— Você não sai daqui enquanto eu não souber o que é isto! E mandou o auxiliar buscar o único sujeito na cidade que entendia japonês.
Tempos depois, chegou o intérprete.
— Pergunta pra esse japonês idiota o que é que ele está trazendo aí!
Resposta do intérprete:
— Ele disse que são os restos mortais do pai...

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Língua


Para ler o texto de hoje, clique aqui

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Y se ama como se come


Ama-se como se come, diz o ditado.
Minha irmã acha que o marido se apaixonou por ela ao vê-la comer uma maniçoba, deliciosa iguaria de carne de porco misturada às folhas tenras, trituradas, da mandioca. É provável: meu cunhado, ótimo cozinheiro, afeiçoa-se às morcelas, tripas, cozidos e pães da deliciosa e pesada culinária portuguesa. Minha irmã, com graça, diz que o marido acharia sexualmente desanimador ver uma mulher jantar apenas uma folhinha de alface. Ele tem razão: comer só uma folha de alface sugere mania de regime, portanto mulher excessivamente vaidosa, intolerante, triste, com tendência à anorexia, desprovida das carnes, molhos e generosidades indispensáveis ao bom sexo.
Mas, e eu, como fico nessa história de amores e comidas? Adoro saladas! No universo da exaltação das maniçobas e que tais, minha reputação amorosa, assim como a de todos os outros amantes da salada, seria atirada ao limbo? Metida em brios, faço uma apaixonada defesa das possibilidades eróticas das saladas.
Duvida? Então, comece misturando amorosamente, bem devagar, prestando atenção ao que faz, os lindos tons e subtons verdes das folhas ao vermelho-paixão da beterraba, ao alaranjado-coração da cenoura, à malícia do tomate, às azeitonas – que, antes de mordidas, devem ser saboreadas vagarosamente por toda a boca -, sem se esquecer, claro, dos picantes pimentões. Sinta o aroma inconfundível do manjericão, que, mesclado ao do orégano, fará você se perguntar onde diabos já sentiu aqueles cheiros maravilhosos, em qual jardim, qual alcova, qual marinha...
Antes de saber a resposta, você já estará acrescentando as uvas, que não embriagam mas conduzem certamente ao mundo excitante dos vinhos e suas semi-verdades. Ao final, derrame em tudo bastante azeite da melhor qualidade – o método deve variar, de uma só vez só, ou gota a gota, bem devagarinho. Não se esqueça de envolver toda a salada no azeite, para que fique bem molhadinha, com aquele inconfundível ar mediterrâneo. Polvilhe finalmente sal, porque sem sal a vida não tem graça.
O melhor de tudo: ao final, você se sentirá leve, leve, absolutamente em forma para qualquer exercício do amor, bem ao contrário do que aconteceria após uma maniçoba...

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Enredos e tramas

Criei um novo blog, o Enredos e Tramas, com textos de ficção mais compridos, meus e de outros autores. Um blog pra quem gosta e tem tempo de se esparramar pelos livros, textos, palavras, letras, pra quem curte ler e discutir literatura. Se chegue, venha conhecer o blog e Meninas, seu primeiro conto. Para isso, basta clicar aqui [Aprendi! Obrigada, Albano.]

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Foi mal

Ontem postei um conto aqui. Não gostei do efeito, acho que visualmente pesou, ficou grandalhão, feio, difícil de ler. Talvez blogs não comportem textos maiores (o de ontem tinha originalmente três laudas).
Vez ou outra, entretanto, gostaria de postar as três primeiras linhas de algum conto ou texto maior, seguidas de um link, que remeteria o corajoso leitor (sempre há, ontem apareceu um para o conto...),para o texto integral, sem pesar no blog. Neoblogueira, não aprendi ainda a fazer esse truque. Alguém sabe?

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Coração escarlate

Um segundo antes de a lâmina romper o céu e encobrir para sempre o sol, ainda conseguiu pensar que tudo aquilo era uma tremenda injustiça. Afinal, nada tinha a ver com os malditos conflitos entre muçulmanos e judeus, sendo apenas um turista, atordoado pela beleza milenar de Jerusalém. Foi seu último pensamento. Os nervos explodiram, o pescoço dilacerou-se, na calçada o sangue maculou pela bilionésima vez a terra santa. A dor infinita rasgou-lhe o corpo. Ainda levou a mão à garganta, num derradeiro gesto – inútil como a guerra. O tremor rompeu-lhe os últimos filamentos do pescoço, e então sua cabeça morena, pequena e pontuda começou a rolar ladeira abaixo, distanciando-se do corpo, no alto.
Escutou o que confusamente lhe pareceram repiques de sinos, ou trombetas misturadas a marés, e mergulhou para sempre no outro mundo. Silêncio. Leopoldo sentiu-se pairar no vácuo, ele próprio ou o que restava dele ou a sua essência – não sabia – suspenso acima do mundo. Ao mesmo tempo viu-se dentro do antigo corpo, ensangüentado em solo palestino. Percebeu-se também no interior da cabeça, estraçalhada agora contra um poste, que lhe interrompera a rolagem ladeira abaixo. Os olhos da antiga cabeça estavam arregalados de espanto e medo.
Descobrir-se em tantas dimensões confundia. Não sabendo quem era, Leopoldo deixou-se flutuar no espaço. Não sentia mais dor, só letargia. Teve certeza de que ingressara em outra dimensão quando enxergou a si mesmo – ou ao que um dia fora, ou ao que havia sido e ainda era, ou ... – de uma perspectiva aérea, e divisou lá embaixo, embaralhados entre si, fragmentos de sua vida.

Avistou-se desembarcando sozinho em Jerusalém, o cinqüentão elegante, desenvolto, habituado a circular nas altas rodas do mundo, casaco preto longo, cabelos grisalhos. Mas - de onde estava, Leopoldo agora via – dois buracos trazia por olhos, no coração, mandacarus, e aquele espanto desolado nas mãos. Ombros baixos e boca amarga, a do homem que chegara a Jerusalém.
À época, não sabia a razão da partida repentina, contrariando sócios e clientes, temerosos por sua segurança. Não era judeu nem tinha interesse especial por Israel. Aquela vontade súbita de ir, e pronto: entrara na agência de viagem, comprara a passagem, marcara hotel. Leopoldo agora vê, inscrito a sangue no corpo desembarcado há dias na cidade: saudade da morte.
“Se você está decidido a se destruir, Léo, então realmente eu não posso fazer mais nada”, revê o desespero amoroso no olhar do amigo, o único capaz de intuir sentimentos e desígnios que até ele, Leopoldo, desconhecia.
Sentia um cansaço mortal. De todos e tudo. Muros altos da rua onde morava, desertos que nunca vira. Difícil mover-se. Solidões. Vontade de detonar a ciranda de poder, sedução e dinheiro em que a vida se transformara. Quase enlouquecera o pessoal da agência. Ninguém mais o entendia. Anúncios de néon, hologramas, pop-ups, gigantescas modelos absolutamente iguais em poses para os clics, colunistas, colunáveis... Futilidades. Lixo. Ir pra onde? Procurar o quê? Interferências dos sócios, faniquitos das mulheres, brigas terríveis com todos, no trabalho, em casa, em público. Madrugadas inteiras pelas ruas úmidas de São Paulo, mãos enterradas nos bolsos, cabeça baixa em meio às putas, travestis e mendigos que sequer via, talvez por isso não o molestassem. Fedor. Entulhos. Sede, mas sede de água pura, água de mina.

Saudade insuportável de Helena, que um dia se enchera das suas traições, jogara as roupas na mala e fora embora chorando. Crateras no corpo inteiro. Helena de rosto lavado, Helena descalça, olho no olho, Helena gosto de pitanga com hortelã, cabelos secos ao vento. Helena inteira, corpo de mulher em canção de menina. Ele, mil estilhaços que feriam plantas, luas, fêmeas... Procurando o quê? Não sabia. Caríssimas garotas de programa, alpinistas sociais, portentos de quem devia puxar o saco, ninguém mais tinha nome em sua vida. Rondas de festas, clientes, jantares, fusões, poder, almoços de negócio, trabalho, cocktails, vaidades, traições, dietas, mais trabalho, recepções, disputas, liftings, trabalho insano, jantares de negócio com direito a todas as sacanagens, fortunas, prêmios, seduções. Sua vivacidade esvaindo-se em anúncios, escorrendo em outdoors, em campanhas, em sites, em marketing político... Puta que pariu!

Um dia quisera mais. Um dia sonhara com coisas realmente bonitas. Leopoldo agora admirava pipas colorindo céus, jovens ao redor de uma mesa recheada de risadas e projetos sociais, vontade de mudar o mundo, compromissos... Coisas que valiam a pena, iluminavam semblantes. Cadê Helena? Helena se casou, Helena se mudou. Cantava cirandas com olhos sorridentes. Decerto se escondeu em algum sítio poeirento, plantando chuchu sem agrotóxico. “A cara dela”, pensara com desdém, vontade de sair gritando de dor, enquanto pensava. Mãos vazias. Dois buracos em cada mão, olhos desolados e aquele desespero por onde sua energia escoava, transformada em cartão postal.

Ondas de ar concêntricas envolveram Leopoldo. Encantado, percebeu: o ser alado em que se transformara podia girar de todas as formas, em parafuso, em mergulho, em dobradura, de ponta-cabeça... Ângulos inusitados do mundo lá embaixo, da cidade santa, do seu corpo e cabeça separados em Jerusalém. Deixou-se flutuar, expandindo as novas possibilidades.
Súbito, lembranças muito antigas do seu ser. Leopoldo se viu transportado a um tempo quando flutuava nu, despreocupado, livre, nutrido por um cordão mágico que o estimulava a crescer, a explorar o útero em volta. Uma paz, uma proteção inexistentes nele, desde que fora expulso daquele vácuo primordial.
Sentiu-se puxado para baixo com violência. “Ainda não pertenço inteiramente a este mundo”, foi a sensação ou idéia ou inspiração ou reminiscência que o assaltou, enquanto despencava velozmente rumo ao corpo, desamparado em Jerusalém. Em volta dele, soavam as primeiras sirenas de polícia, passantes fugiam em todas a direções.
Momento quase religioso, o do retorno ao corpo. Pela primeira vez, Leopoldo deu-se conta da sua extrema fragilidade. Cisco no universo, capaz no entanto de carregá-lo e conferir-lhe uma identidade durante toda uma existência “Esse corpo era eu”, sentiu, ondas de amor formando-se à volta.

De repente, foi aspirado para dentro do corpo. Barulhos ensurdecedores de gases, correntezas, fluidos. Assustado, moveu-se instintivamente. Um deslocamento o jogou dentro da cavidade escura, de espessas paredes. Reconheceu aquelas paredes pelo tato e olfato. Tocou e cheirou meticulosamente cada calosidade, ruga, mancha, aspereza, curva, reentrância. Uma, duas, cem vezes. Emocionado, percebeu que eram marcas internas do tempo, calendários do seu corpo.
O buraco fétido aparecera, estava claro agora, quando completara a lucrativa fusão da sua agência com os italianos, deixando à míngua o primeiro sócio. E a ferida que ainda supura parece tão... antiga! Leopoldo enxergou o menino pequeno, rostinho colado à janela, vendo o corpo esguio da mãe, abraçado a um desconhecido, desaparecer para sempre dentro do nevoeiro de São Paulo.
Foi tragado por uma correnteza vermelha, densa, que o conduziu até o lugar mais macio, acolhedor e feliz onde jamais estivera. Enfim relaxado, pôde entregar-se às madressilvas encarnadas, aos sussurros mansos dos rios, aos foles que jamais paravam de tocar, às pétalas aladas sobre a neve, aos desvarios de bocas entreabertas, às curvas dos cachos de crianças, aos arrepios das nucas, à vegetação rarefeita dos cumes das montanhas. Soube-se instantaneamente desejado, perdoado, consolado, aceito - amado.

Do mundo das madressilvas encarnadas, Leopoldo enxergou sua antiga cabeça, espatifada contra um poste de Jerusalém. Amorosamente a envolveu - a ela, que por toda aquela vida o guiara até a fama e a fortuna, mas jamais lhe concedera sequer um segundo de amor, perdão, esperança ou compaixão. Limpou-a com cuidado de todas as sujeiras, da terra e do sangue que nela se haviam grudado, e também do seu excesso de miolos. Beijou-a, fechou-lhe para sempre os olhos e a reuniu ao antigo corpo, recompondo a figura que um dia fora ele.
Nesse momento, Leopoldo divisou a menina palestina que acabava de nascer. Vinha ao mundo num beco escuro da medina, em meio à noite de guerra, horror e mísseis. Era apenas um corpinho nu, chorando sobre a calçada. Leopoldo envolveu a menina em sua onda quente, e nela enterrou seu bem mais precioso, aquele em que acabava de se transmutar, um coração escarlate. Janaína Amado

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Vontade de cantar

Canção da liberdade

Eu só tenho a vida minha.
Eu sou pobre pobrezinha,
tão pobre como nasci,
não tenho nada do mundo,
tudo que tive, perdi.
Que vontade de cantar:
a vida vale por si.

Nada eu tenho neste mundo,
sozinha!
Eu só tenho a vida minha.

Eu sou planta sem raiz
que o vento arrancou do chão,
já não quero o que já quis,
livre, livre o coração,
vou partir para outras terras,
nada mais eu quero ter,
só o gosto de viver.

Nada eu tenho neste mundo,
sozinha!
Eu só tenho a vida minha.

Sem amor e sem saúde,
sem casa, nenhum limite,
sem tradição, sem dinheiro,
sou livre como a andorinha,
tem por pátria o mundo inteiro,
pelos céus cantando voa,
cantando que a vida é boa.

Nada eu tenho neste mundo,
sozinha!Eu só tenho a vida minha.

Que vontade de cantar:
a vida vale por si.

(Poema "Liberdade", do livro "Canção da Partida", de Jacinta Passos)

Jacinta foi mulher extraordinária. E foi minha mãe. Estou escrevendo uma pequena biografia dela, e republicando seus poemas. O livro sairá em breve, pela Editora Corrupio.