segunda-feira, 27 de julho de 2009

A menina e a boneca


Quando o tio lhe estende um embrulho do seu tamanho, arregala os olhos, morta de medo que seja mentira. Aquilo é mesmo pra ela? Mesmo? Sim, vários adultos sorridentes balançam a cabeça ao mesmo tempo. Antes que tudo vire mentira, joga a caixona no chão e começa rápido a rasgar o papel de presente, pedaços coloridos de papel voam pela sala, ela louca pra saber o que tem dentro daquela caixa. Jamais ganhou um presente assim tão grande. Faz tempo que não recebe presente algum.

Quando seus dedinhos grossos conseguem finalmente erguer a tampa da caixa, quase sem respirar grita É uma menina! Ganhei de presente uma menina! E se desconcerta, porque os adultos em volta riem, e detesta que riam dela. Como assim boneca, se as suas bonecas são pequenas e moles, de pano, só a cara têm de louça, seus grandes olhos pintados não se mexem, mas esta... Ah, esta dorme e acorda, acorda e dorme, esta tem cabelos cacheados de fada — a menina sente incontrolável arrepio de satisfação, ao tocar os cabelos da boneca —, esta mexe os braços pra cima e pra baixo, veja! O tio lhe mostra que a boneca... anda como eu! Usa batom e rouge e veste um vestido cor de rosa de festa e um chapéu de festa e sapatos e meias rendadas de festa tão lindos como eu nunca tive nem nunca vou ter na vida.

A menina abraça a boneca-menina, as duas do mesmo tamanho. Abraça mais forte, abraça muito forte, olhos fechados. Sente tanto medo da boneca desaparecer pra sempre, ficarem sozinhos de novo ela e os avós, como antes dos tios surgirem na sua vida. Ainda de olhos fechados, numa espécie de teste dá um beijo tímido na bochecha da boneca, sente sua textura um pouco dura: Ela não foi embora! Desta vez, de tanta felicidade nem escuta a risada dos adultos.

Abraçada à boneca, pela primeira vez na vida a menina sente-se grave. Esta é a sua boneca. Dali em diante caberá a ela, só a ela, cuidar da boneca-menina. Dar-lhe comida, levá-la pra passear, brincar todos os dias com ela na praça, nunca deixar que se quebre, pentear seus cabelos, ajeitando os fios todos na mesma direção, ser sua professora, arrumar seu vestido e chapéu tão elegantes, enchê-la de beijinhos e carinhos, segurar sua mão para que não caia, guiá-la, colocá-la para fazer xixi, protegê-la dos primos assassinos...

A menina percebe a solenidade do momento. Sabe que a partir de agora um outro ser depende dela. Nunca mais será a mesma. Seus olhos ganham pausa, seu peito estreito, que carrega o coração ainda leve, torna-se de repente atento, a boca pensativa, neste instante agarra-se a seus ombros aquela responsabilidade orgulhosa de ter de proteger os outros que carregará vida afora, até a morte.

20 comentários:

Denise disse...

Não era muito de bonecas,moleca demais ,mas lembro-me bem de uma especialmente grande,cabelos anelados,e a impressão que seria mãe de todas as outras que ficavam arrumadinhas empoleiradas pelo quarto esperando que eu,menina-moleca um dia resolvesse dar-lher vida.

Aqui é sempre tudo tão lindo.

estava com saudades

Denise

Anônimo disse...

Jana, eu chorei pra caralho xuxu às pampas. Tive de parar no meio para limpar "as vistas" e tomar fôlego. Amei, amei, amei. Agradeço um tyexto deslumbrante assim.

aeronauta disse...

Puxa, Janaína, esse é mesmo um texto perfeito, perfeito. Fico muda diante do que é perfeito. Lindíssimo.

Ana Tapadas disse...

Também eu não era muito de bonecas...mas tive várias. Na verdade aquilo que adorei foi o teu texto!
beijinho

Nilson disse...

Tocante! Eu, menino, nunca entendi o que as meninas vêem nas bonecas. Agora ficou mais claro!!

Gerana Damulakis disse...

Lindo! Senti tudo a cada frase sobre um momento tão especial: o nascimento da responsabilidade!
Amei seu texto pleno de emoção.

clarice ge disse...

Maravilha de texto. Conta os sentimentos que tive um dia, rss. É tão mágico o mundo infantil, tão rico, tão surpreendente.
Beijinhos moça dos truques

Muadiê Maria disse...

que lindo, Jana, lembrei das minhas duas bonecas importantes e fiquei emocionada com esse texto feminino.
beijo

Márcia(clarinha) disse...

Fantástica volta no tempo.
Nesse dia a menina deixa de ser tão menina para cuidar da boneca-mãe-mestra-moleca.

lindo!
beijos

clarice ge disse...

Janaína, atoamente é a palavra. mudei a imagem depois de ler os recados teu e do Edilson. Brigada por avisar!
beijinhos

nydia bonetti disse...

Que texto lindo, Janaína. Eu tive só uma boneca e a sensação que ela me causou quando ganhei foi muito parecida. Quantas lições na infância... bjos.

dade amorim disse...

O instinto materno está presente desde bem cedo, Jana (é assim que chamo minha neta que tem o seu nome). Seu texto é um primor.
Beijos.

Luci Lacey disse...

Janaina

Esta menina de dedinhos grossos era vc?

Bem, sempre amei bonecas e tinha predilecao pela minha "Rosinha", uma amada boneca de pano.

Sonhava em ganhar a Amiguinha da Estrela, mas era orcamento pesado para meus pais e ganhei a Xodo que fez o mesmo efeito.

O sentimento tao bem descrito por voce, foi o que senti tambem.

Parabens, Janaina e prazeroso ler o que escreve.

Beijinhos

http://graceolsson.com/blog disse...

oi Janaina, nao tenho muita lembranca de bonecas e sim, de uma pantera cor de rosa. Mas o tempo passou, e , eu já acdulta, em apeguei a elöas.bjs e diasf elzies

Lord Broken Pottery disse...

Jana, querida,
Li seu texto ontem, não quis comentar logo, preferi refletir um pouco a respeito dele. Tocou-me demais, por várias razões. Conseguir captar a alma infantil é um de meus desejos mais fortes no momento. Você, caminhando através do mundo mágico das memórias, e trazendo a ele a força da sua ficção, conseguiu arrasar. Bonito, bem escrito, um primor! Acho interessante a possibilidade que temos, ao conhecermos o escritor, de fazermos leituras diferentes, muitas vezes até mais emocionadas. Sei que você andou lidando com fotogrfias do passado, identifico a maioria dos adultos envolvidos, consigo enxergar o cenário que você descreve povoando-o com as personagens para mim familiares: tios, avós, etc. De alguma forma, entendo o processo criativo, o que também me interessa muito. Já conhecia a boneca de cabelinho curto, a de carne e osso, talvez dessa mesma foto, ou de outras.
Beijo carinhoso

Senhorita B. disse...

Nossa, que texto lindo!
Bjs

M. disse...

Tão lindo, Janaína, a narração desse encontro, desse rito de passagem. Beijos, M.

Aninha Pontes disse...

Não foi dos tios. Foi da mãe. Mas a sensação foi extamente essa.
Uma única boneca, toda de louça, mas piscava, fazia mutas coisas que a bonecas de pano não faziam.
É uma felicidade, para carregar para sempre. Lembranças de momentos, que existiram, não são sonhos.
Parabéns menina. Você é grande.
Beijos

Rosamaria disse...

Janaína, eu vim lá da Aninha ler o texto completo e amei. Parabéns,tu escreves muito bem!
Bjim.

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ disse...

Janaina, eu nao tive uma boneca de louca;
Minha primeira boneca eu a ganhei quando tinha 12 anos; nunca sobrava dindin para comprar brinquedos;
Eu tinha outras bonecas sim, mas ganhas da comunidade da igreja católica que oferecia às criancas pobres, mas faltava olho, às vezes faltava braco e perna; mas era uma boneca com cabelo, e isso me deixava feliz.

Esse seu texto me fez me ver menina naqueles tempos...

Um grande beijo