domingo, 30 de agosto de 2009

As crianças e as ruas


[Amigos, desculpem ter aparecido pouco por aqui ultimamente. Um conjunto de coisas me afastou, mas já estou de volta, alegre e com saudade.]
Fui criada no Rio de Janeiro, para onde meus pais se mudaram quando eu tinha três anos de idade. O Rio é a minha cidade afetiva, a que me traz mais memórias recuadas, aquela em que melhor me reconheço. Não este Rio de agora, dilacerado por conflitos sociais e pela degradação que atinge todas as suas esferas e teima em destruir — felizmente, ainda sem conseguir — uma das mais belas e acolhedoras paisagens do mundo.
No Rio onde cresci, nós, as crianças, brincávamos na rua. Isso mesmo: montes de crianças espalhadas ao mesmo tempo pelas calçadas, dá pra imaginar isso no Rio de hoje? E eu não morava em subúrbio afastado ou área semirural, não. Fui criada em Copacabana, na Av. Princesa Isabel, a rua do túnel novo. Ali, e poucos sabem disso, há duas ou três vilas, com casas. Uma senhora idosa, que morava numa delas, aborrecida com a algazarra que aprontávamos, costumava chegar à janela, furiosa, e nos enxotava:
— Saiam daqui, já!
Pois nós, mãozinhas nas cinturas, respondíamos: — O que é, hein? Tá pensando que a rua é sua, é?
A rua era nossa.
Paulatinamente, devido a uma série de fatores conjugados — crescimento da violência urbana, piora do trânsito, superpopulação, aumento do tráfico de drogas, diminuição dos espaços públicos, entre outros — as crianças foram sendo expulsas das ruas. Cada vez mais confinadas às casas, apartamentos, praças cercadas, escolas, pequenos pátios murados, isolados... Espaços não apenas menores, como internos, interiores, e muito vigiados. Neles, a presença de adultos é constante, o que deixa poucas possibilidades às crianças para interagirem livremente, descobrindo o mundo a partir de seus interesses, necessidades e desejos. E ainda cria um bocado de estresse para elas como para os adultos, pois, obrigados a conviver mais do que gostariam, se irritam e se castram mutuamente.
Os espaços urbanos foram ficando tão distantes da infância que, hoje, a expressão “meninos de rua” designa crianças muito pobres, sem estrutura nem apoio familiar, financeiro ou social. As ruas, que já foram minhas e dos meus amigos, tornaram-se espaços degradados.
* Imagem: Cândido Portinari, "Meninos brincando"

domingo, 23 de agosto de 2009

Viajar é perder-se


[Continuando a série sobre viagens]

Viagem

Viajar
mas não
para

viajar
mas sem
onde

sem rota sem ciclo sem círculo
sem finalidade possível.

Viajar
e nem sequer sonhar-se
esta viagem.

Orides Fontela (do livro Rosácea, 1986)

Apesar de pouco conhecida do público, a paulista Orides Fontela (1940-98) é uma das melhores poetas brasileiras do século XX. Teve uma vida difícil, devido a problemas ecônomicos e mentais — faleceu em um sanatório —, mas sua poesia mereceu prêmios importantes, como o Jabuti e o da Associação Paulista de Críticos de Arte. A obra de Orides Fontela está agrupada no volume póstumo Poesia reunida (S.Paulo: 7 Letras/Cosacnaify, 2008), um livro em que vale a pena viajar, redescobrir-se, perder-se.
*Imagem: "Scape", pintura de Stephen Linhart

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A arte de Tânia Pedrosa


A alagoana Tânia de Maya Pedrosa não sabia que nasceu artista. Certo dia, casada e mãe de filhos, obedecendo a um impulso comprou tintas e tela, e começou a pintar. Escondido. Ninguém na família sabia. Sentia vergonha dos quadros que produzia, achava que não tinham valor algum. Queria só expressar seus sentimentos.

Certa ocasião, recebeu, como hóspede da família, o alemão Ludger Stockman, formado em Artes. Ao ver entreaberta a porta de um depósito nos fundos da casa, Stockman ali entrou, deparando-se com os quadros de Tânia. O crítico alemão adorou a pintura colorida, criativa, original, garantindo a Tânia que ela era, sim, artista, e das grandes. Ela, porém, não acreditou muito: em 1998, incentivada por Antônio Nascimento, enviou dois quadros para a Bienal Naïf do Brasil, mas nada disse à família, pois achava que jamais seriam selecionados; contou só ao amigo, cúmplice e também artista Lula Nogueira. Qual não foi a sua surpresa, quando se descobriu não apenas aceita na Bienal, mas com um de seus quadros como capa do catálogo, e detentora do prêmio de pintura.

A carreira de Tânia de Maya Pedrosa deslanchou, na Europa e no Brasil. Ela não mais parou de pintar, ganhando diversos prêmios internacionais (como o Prêmio Europa de Arte Primitiva, entre outros) e brasileiros. O magnífico quadro a óleo que ilustra este post, expressando o imaginário do litoral e sertão nordestinos, é de sua autoria. Clique aqui para conhecer um pouco mais sobre a artista.

Tânia de Maya Pedrosa sempre incentivou os artistas populares de seu Estado. Não apenas escreveu livros sobre eles, como possui uma extraordinária coleção de arte primitiva nordestina, em especial alagoana, que precisa com urgência merecer espaço público adequado, onde possa ser admirada pelos que amam arte.

domingo, 16 de agosto de 2009

Um ano de blog

Este blog está fazendo um ano. Jamais pensei que escreveria esta frase.

Foi minha amiga Maria Sampaio quem insistiu comigo pra criar o blog. Nunca havia pensado nisso, não tinha sequer (confesso!) paciência pra ler blogs... Mas ela insistiu com jeito, e de repente me encontrei blogueira. Estava numa fase de mudanças, recém chegada de uma temporada ensinando história nos Estados Unidos, com muita vontade de voltar à literatura mas sem saber direito como, ao mesmo tempo querendo começar algo novo mas sem saber exatamente o quê... Nasceu assim este acreditandonotruque, em meio às minhas incertezas e ao carinho amigo. Logo depois, para abrigar textos mais longos, dos quais não desejo abdicar, criei o enredosetramas. Aos poucos, à medida que os e-amigos me ensinavam a lincar, colocar imagem, trazer vídeos do you tube etc. — sim, a ignorância aqui era e permanece crassa, ampla, irrestrita e resistente —, fui visitando outros blogs e recebendo leitores no meu.

Sou poeira na blogosfera, este universo infindo, tão ou mais poderoso do que o outro, o concreto. Neste ano, porém, descobri um mundo. Conhecidos que se transformaram em amigos, amigos que trouxeram novos amigos, gente de várias partes do mundo interessada nas mesmas coisas que eu, gente escrevendo muitíssimo bem, gente me incentivando e sendo incentivada, trocas, textos conduzindo a textos conduzindo a textos conduzindo a textos, o poder das imagens, poesia, rapidez, música, o conhecimento de experiências formidáveis feitas mundo afora, os aprendizados, diálogos, palavras apressadas, besteirol, risos, surpresas — muitos favos de mel, poucos travos de jiló —, participação em campanhas, minha literatura reaparecendo, ressurgindo em mim. Vontade de ousar, de cantar, de me jogar neste universo ao mesmo tempo instantâneo e duradouro, efêmero e influente, assustador e apaixonante, poderoso e frágil, ilusório, real.

Nesta blogosfera sempre a descobrir, que se comunica com o restante do mundo virtual e com o mundo concreto mas também representa um espaço específico, com regras próprias, neste admirável mundo novo o que mais me encanta é descobrir um grupo de sentimentos velhos como o mundo, tais como amizade, acolhimento, respeito pelo diálogo: amor, enfim.

No começo, de leitores eu só tinha Maria e alguns parentes. Depois, via meu primo Caco (o único lord da família), apareceram o Valter Ferraz, que inventou uma rádio, e sua mulher, a blogueira Aninha Pontes. A esses primeiros leitores dedico meu primeiro ano de blog. E, simbolizando todos vocês, meus leitores — vocês são a razão de ser do blog, sem vocês não há blog —, dedico este primeiro ano de blogagem também ao fiel, solitário, silencioso leitor ou leitora que vive em local marcado como “desconhecido” no meu contador de visitas. Sei apenas que me lê com frequência, de lá do extremo norte de Mato Grosso, perto de Sinop, em plena floresta amazônica.

Juro por Deus que, no segundo ano de blog, vou aprender a ser sucinta.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Lá se vai São Gonçalinho


Lá se vai São Gonçalinho
Lá se vai São Gonçalinho
Fora de seu oratório
Fora de seu oratório
Acompanhado de anjo
Acompanhado de anjo
Também de Nossa Senhora
Também de Nossa Senhora

[Cantado em procissões no interior do Brasil, especialmente no Nordeste, incluindo-se as barrancas do rio São Francisco; São Gonçalo, português, é santo casamenteiro de mulheres velhas.
Canto copiado do romance A Dama do Velho Chico, do escritor baiano Carlos Barbosa (Rio: Bom Texto Editora, 2009), que acabo de ler, e recomendo com entusiasmo.]
*Imagem: Procissão de São Gonçalo em Sergipe, aqui

sábado, 8 de agosto de 2009

Boa notícia!


Amigos, recebi ontem uma notícia muito boa, que desejo compartilhar com vocês: a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) aprovou o pedido que fiz de apoio à publicação do livro Jacinta Passos – Canção Atual.

Jacinta Passos (1914-1973) foi uma expressiva intelectual da Bahia, que publicou quatro livros de poemas e se tornou uma das mais ativas jornalistas do Estado. Seus livros — elogiados à época por intelectuais do porte de Mário de Andrade, Antônio Cândido, Aníbal Machado e muitos outros — estão esgotados há vários anos. Sua vida, marcada por tragédia pessoal e pela luta incansável em prol de justiça social, transformações políticas e melhoria da situação das mulheres, é pouco conhecida.

Além dos poemas publicados em vida, acrescidos de notas explicativas, a edição aprovada trará a produção jornalística de Jacinta Passos, seus textos inéditos, sua biografia e a fortuna crítica sobre sua obra, ao lado de ensaios escritos especialmente para a publicação, de autoria de intelectuais conhecidos. O volume será publicado pela Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba) e pela Editora Corrupio.

No dia 11 de setembro, assinarei o convênio com a Fapesb, e a partir daí trataremos da edição. Jacinta Passos é minha mãe. Sinto enorme alegria em ter podido contribuir para que sua arte, pensamentos e trajetória biográfica possam estar de novo ao alcance de leitores — novos leitores, que decerto saberão amá-la, compreendê-la e estudá-la.
*Foto de Jacinta Passos, início da década de 1940. Fotógrafo desconhecido.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Resistir, quem há de?


Resistir, quem há de? Entramos.


Dona Rosa revela-se ótima costureira. Brilho e requinte.
* Fotos: Luiz Carlos Figueiredo

sábado, 1 de agosto de 2009

Domingo - Pra começar bem o dia 6


Filosofia

Hora de comer — comer!

Hora de dormir — dormir!

Hora de vadiar — vadiar!

Hora de trabalhar?

— Pernas pro ar que ninguém é de ferro!

Ascenso Ferreira

O pernambucano Ascenso Ferreira (1895-1965) é um dos maiores poetas brasileiros. Com humor, sátira e originalidade, criou versos definitivos a partir de temas populares. É urgente a republicação de sua obra integral.
* Imagem daqui.