quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Dissolver-se


De repente, a enxurrada. As comportas de aço do meu peito subitamente se escancaram, não tenho tempo de fugir. Só ouço trovões, e já vejo as águas chegando. É de novo o dilúvio, penso apavorada. Corro, mas as águas correm muito mais depressa do que eu. Essas águas, que estavam represadas — represadas onde, em qual invisível comporta, em qual dor, qual desespero, dentro de qual silêncio, qual floresta, qual memória assassinada, qual ruga, em qual fogo elas estavam? —, de repente todas as águas do mundo despencam aqui dentro do meu peito. Tudo. Cachoeira, cascata, queda d´água, itororó, catarata, roncador, véu-de-noiva, com uma força que eu não suspeitava que as águas possuem.
Mas – juro por esta luz que me alumia — , quando chegaram, chegaram mansas. As águas pousaram calmas no meu peito, se espalhando sem nenhuma pressa, derramando seu frescor. Muito aos poucos assumiram a forma do meu peito, isto é, a minha forma. As águas envolveram cada órgão meu, cada músculo e nervo, envolveram o meu coraçãozinho tolo apressado de medo, líquidas transparentes transparecidas águas.
Água benta, aguarrás, água-marinha, água-de-cheiro, água de cana, de castanha, de colônia... Lavanda lava esta ponta de pedra aqui, este cotoco de breu, este bloco de ferro, este grito, esta foto tão incômoda, esta pontada que dói dói dói, água-benta purifica inveja, saudade do que nunca existiu, desejo mal satisfeito, culpa, malefício... Água doce bate na enorme pedra verde-escura bem no centro do meu peito, água alisa a pedra, água mole em pedra dura tanto bate até que fura, mas fura com carinho, fura limpando, dissolvendo, vem cachoeira vem, águas de março, dezembro e fevereiro, águas-marinhas, águas de rio, de mar azul e verde, riachinho... Água, simplesmente: a minha lágrima.

11 comentários:

Muadiê Maria disse...

água, água, água!
belo texto, Jana.

Anônimo disse...

janaina:
você ainda é ser existente?
romério

Ana Tapadas disse...

Quanta sensibilidade!
Beijinho

Cosmunicando disse...

me dissolvi nesse texto, nessas águas.
lindo!

bjos

Bernardo Guimarães disse...

ô,essamenina,texto mais bonito,da gente mergulhar no peito liquido choroso e amigo.

Anônimo disse...

Janaina, o texto muito me emocionou. P.S.: E o engraçado é que eu sei quem é a Aeronauta e ela sabe quem sou eu. Aliás, foi ela quem me incentivou a criar o blogue. Beijos

Bípede Implume disse...

Água que purifica tal como este maravilhoso texto.
Grande abraço.
Isabel

Ana Tapadas disse...

Beijinho!
Porque hoje é sábado...

Lord Broken Pottery disse...

Jana, querida,
Muito bom! Qualquer coisa que eu falasse ficaria pequena ante a beleza do texto.
Beijo grande

claudio rodrigues disse...

Engraçado, heim. Eu desesperado com o vento, e vc com água. Lindo texto, como tudo o que vc escreve... uma enxurrada de beleza... pororoca.
ass.: o vento de aquário.

Edu O. disse...

me deu vontade de falar/fazer/atuar este texto. que beleza, que belo ritmo. começa como uma cacheira mesmo, vai amansando, aquietando e acaba na leveza da lágrima!! lindo!!

Quanto ao post sobre a taxa do telefone fixo, recebi tanta mensagem depois que publiquei e coloquei no meu orkut... acho que funcionou.

beijo