
"Nestes dias em que se celebra o nascimento do Cristo, outra ideia me acudiu, talvez mais provocadora ainda, direi mesmo que revolucionária, e que em pouquíssimas palavras se enuncia. Ei-la. Se é verdade que Jesus, na última ceia, disse aos discípulos, referindo-se ao pão e ao vinho que estavam sobre a mesa: “Este é o meu corpo, este é o meu sangue”, então não será ilegítimo concluir que as inumeráveis ceias, as pantugruélicas comezainas, as empaturradelas homéricas com que milhões e milhões de estômagos têm de haver-se para iludir os perigos de uma congestão fatal, não serão mais que a multitudinária cópia, ao mesmo tempo efectiva e simbólica, da última ceia: os crentes alimentam-se do seu deus, devoram-no, digerem-no, eliminam-no, até ao próximo natal, até à próxima ceia, ao ritual de uma fome material e mística sempre insatisfeita. A ver agora que dizem os teólogos."
[José Saramago, O Caderno de Saramago]
Parece-me ideia muito bem pensada.
Nós, brasileiros, mantemos uma relação muito estreita com a antropofagia. Desde nossas origens mais remotas, fomos estigmatizados, por europeus, como antropófagos. A partir do século XX, desde o modernismo, resolvemos nos assumir como antropófagos, ou seja, nos assumir como aqueles que devoram e digerem dos outros o que desejam.
Por isso, acho que nós, brasileiros — preconceitos religiosos à parte —, poderemos compreender a sugestão de Saramago, e mais: brincar com ela. É a minha sugestão. Fica o convite.
* Foto daqui, da pintura "Santa Ceia", de autoria da artista Bete Brito.